Transcrevo aqui, mais uma vez, um interessante artigo de opinião de Mário Crespo, no Jornal de Notícias de 28 de Abril de 2008.
Como sempre, a sua reflexão sobre o assunto em questão é deveras interessante.
É fácil falar de intolerância, de falta de liberdade de pensamento, e esquecer os nossos "moralistas".
Noutro dia Igreja Católica pediu a Sócrates que controlasse o laicismo de alguns membros do PS.
Hum, o tempo que permitiu que a obra de um escritor fosse censurada por "moralistas" de meter nojo não está assim tão distante e parece estar sempre presente, à espera do momento oportuno para mais uma vez nos escravizar com os seus "valores morais".
"Notável
Uma das mais brilhantes e intensas jovens jornalistas que conheço (a ordem de adjectivos é aqui aleatória) é a Joana Latino da SIC Notícias. Certamente que há mais na sua geração com predicados igualmente assinaláveis, mas esta, eu conheço e sigo de perto o seu trabalho.
Há uns cinco anos foi a Lanzarote entrevistar Saramago. O Nobel da literatura mostrava-se ainda profundamente magoado com o disparate censório de Sousa Lara que Santana Lopes e Cavaco Silva sancionaram em 1992. José Saramago devia estar no estado de espírito do seu "anjo das condenações", como ele aparece descrito nessa obra maior da literatura mundial que é o Evangelho Segundo Jesus Cristo. A conversa foi muito na linha daquilo que Saramago pôs o anjo a dizer "Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo." No fim da entrevista a Joana perguntou-lhe porque é que ele não vinha viver para Portugal. Saramago disparou-lhe uma ríspida pergunta. 'Para quê?' 'Porque gostava de ir na rua e de vez em quando encontrá-lo!', disse ela.
Foi esse privilégio da proximidade humana que o instinto jornalístico da Joana detectou que tínhamos perdido. Foi isso que António de Sousa Lara, Pedro Santana Lopes e Aníbal Cavaco Silva nos retiraram quando proibiram a participação do Evangelho Segundo Jesus Cristo num concurso ao Prémio Literário Europeu porque o livro descrevia crenças fora dos cânones da trindade governativa de então.
José Sócrates restituiu-nos agora esse privilégio do contacto com a promessa do regresso da intimidade desinibida connosco, as gentes de Saramago. Foi notável a iniciativa de honrar a sua vida e obra trazendo a Lisboa A Consistência dos Sonhos, a exposição biográfica do único Prémio Nobel da literatura que escreve em Português.
O que Saramago conseguiu com o dom da sua prodigiosa criatividade foi dar aos que falam português, e necessariamente aos portugueses, aquela gloriosa sensação de "nos sentirmos três centímetros mais altos" como alguém lhe disse na viagem pela sua terra que decidiu fazer depois de ter recebido o Nobel. Isto porque a distinção de Estocolmo, que veio seis anos depois do escritor ter sido incluído no Índex do cavaco-santânico-larismo, foi a primeira atribuída a criatividade literária expressa em língua portuguesa. Este assinalável feito, só agora, uma década passada, é que foi realmente reconhecido por um governo da República.
O Primeiro-ministro manifestou na inauguração da exposição no Palácio da Ajuda a gratidão de Portugal por tudo aquilo que o Nobel da literatura faz em prol do prestígio da Língua Portuguesa e de Portugal. Sócrates fica com o enorme mérito de ter, finalmente, feito a reparação concreta do mal incomensurável que o Estado português, numa das suas traduções executivas mais infelizes, infligiu à criatividade artística de alguém que já na altura era reconhecido internacionalmente.
A iniciativa de trazer A Consistência dos Sonhos para Portugal e de a inaugurar acompanhado de grande parte do seu governo, restitui-nos a respeitabilidade no próprio Palácio da Ajuda, a tradicional sede da cultura dos governos onde, em tempos, o disparate de Lara, a irresponsabilidade de Santana e as ausências de dúvidas de Cavaco se tinham conjurado para cobrir de ridículo todo um país. Por isso, a exposição a Saramago está agora onde deve estar, organizada com a eficácia, descrição e elegância de, finalmente, uma verdadeira política de cultura. Sem cilícios penitenciais, com actos significativos e claros, a obra de José Saramago está a ser honrada como sempre devia ter sido.
Analisar uma obra que mereceu um Prémio Nobel por reflexões feitas sobre a humanidade, o Estado, a religião, a democracia excede uma curta descrição de episódios. Mas este registo jornalístico permite que diga que me sinto "três centímetros mais alto" quando leio na New Yorker ensaios sobre a obra de Saramago onde o constante interpelar dos sistemas normativos de crenças do seu espírito é estudado por académicos e é admirado pela lucidez de um pensador empenhado na descrição do que o rodeia e de si próprio. Enquanto Lara, o repetente, diz que "voltaria hoje a fazer o mesmo" e a certeza de Cavaco descarta como "absurda" a exploração filosófica de um Prémio Nobel, eu, por mim, tal como a Joana Latino, do que eu gostava era de andar pelas ruas de Lisboa ou do Porto e de vez em quando encontrar José Saramago. Depois do que José Sócrates e António Pinto Ribeiro fizeram espero que, agora, isso vá acontecendo."
Artigo completo pode ser encontrado aqui.
Exposição José Saramago – A consistência dos sonhos
Exposição José Saramago – A consistência dos sonhos
Galeria de Pintura do Rei D. Luís
Palácio Nacional da Ajuda
24 de Abril a 27 de Julho de 2008
Todo os dias, excepto à quarta-feira, das 10h às 19h
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário